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terça-feira, 10 de junho de 2014

A Ruiva - Capitulo 1

Capítulo 1


O Início (Agridoce)
O ”Era uma vez” difundido no “felizes para sempre” criando a nossa doce, amarga e distorcida história.
“-Malabarista! Senhor malabarista! Rapaz, olhe a sua mão, está a arder homem …”


“ O Sol nasce sete dias no império Britânico” – Ó que bela frase, e cheia de razão! Não é que me queixe, eu gosto do inverno, mas esta chuva … Já me faz cabelos brancos, e é de salientar que tenho apenas vinte e dois anos. Não sei ao certo quem a disse, mas ponho as mãos no fogo em como foi um senhor ou uma senhora cheios de sapiência. Coisa que honestamente me faz falta, mas gosto de crer que isso ganha-se com experiência de vida, com os anos a passar por nós e a deixar as marcas da sua passagem. Tanto as rugas como os cabelos brancos são da praxe e é egoísta quem os negar, afinal são apenas provas de que tiveste uma vida! Não é bonito ver o plástico que cada vez mais é tão usado por pessoas de papel. Tenho orgulho em dizer que sou de carne e osso e não de plástico, sou genuíno e não tenho medo das rugas! Que venham elas, ricas amigas, companheiras de uma vida …
Bem, mas por agora a minha pele não está amarrotada, pelo contrário. Dizem que esta é a flor da idade, mas tal conceito não se aplica no meu caso. Já a vivi, talvez tivesse os meus dezasseis anos, tive tempo de fazer todos os disparates aceitáveis e não aceitáveis, de gritar ao mundo que estava vivo e que não tinha medo dele, ainda lembro da minha mãe a gritar: - Gabriel, és fresco. Mas eu tiro-te a frescura toda! – Que saudades tenho da minha mãezinha. E do meu rico pai? Por onde anda ele?
Foi aos dezoito que sai de casa para “encontrar o meu caminho” , fora isso que disse a minha mãe. Tretas … Queria divertir-me, beber e conhecer meninas bonitas (que tolo que era, ou ainda sou …) mas foi isso que me levou a fazer as malas, a despedir-me da minha rica mãe e das suas empadas de galinha.
 Sempre com as laranjas debaixo do braço, aquele breve desejo que nunca cessa, mas que também nunca aflora ao cimo de mim de modo a tornar-se pujante e a fazer de mim um homem confiante.
Prometi à minha mãezinha que voltaria com as ideias no lugar, com um emprego, com uma casa, talvez um carro. Agradou-lhe a ideia, já com três filhas criados, só falto eu.
 Ligo-lhe todas as semanas com o velho telemóvel, perdido algures na casa que trago as costas, se a minha pobre mãe soubesse do que é feito de mim... Ligo à minha mãe, falo com o meu pai. E passo horas a conversar com as minhas três irmãs mais velhas. Todas elas são as donas do meu coração … Mas por estranho que pareça, estou tão bem! Livre! Sem casa, é verdade, mas sem rotinas, sem nada, só eu e as minhas laranjas. Mas já passam quatro anos que ela não me vê, talvez deva voltar e admitir a derrota, mas por agora, o meu orgulho ainda não me permite fazer tal coisa.
Ninguém compreende tal vida que levo, mas tenho o lápis não mão, só falta o mais difícil, começar a viver. Meu nome é Gabriel Brigas, nasci numa sexta-feira treze, tenho vinte e dois anos e três irmãs, todas elas são brancas como a cal, têm a cara sarapintada de sardas e são belas como o mundo. E enquanto elas são o branco, eu sou o preto. Literalmente, há uma explicação válida. Enquanto o pai das minhas irmãs tem os olhos da cor do céu e a pele branca. O meu pai, marido da minha mãe, é da cor da minha sombra.
E orgulho? Sim orgulho-me de ser diferente. Orgulho-me de não ser branco nem preto. E em vez de vinte dedos, tenho dezanove, uma história que vos contarei mais tarde, mas o mais importante. Estou apaixonado pela mulher mais bonita do mundo a seguir à minha mãe, a Ruiva do andar da esquina.

Í

Aí vem ela, que bela que hoje está, ainda mais bonita que nos outros dias, talvez por ser domingo, está com os cabelos ruivos no alto. É a mulher mais bonita do mundo.
Talvez seja por sua causa que não consigo deixar esta rua, arranjar um emprego e alugar um andar, mas vou fazer o quê da minha vida? Sabe tão bem, vê-la partir de manhã com as galochas verdes e condizer com a gabardine e o cabelo fresco e solto. Vê-la chegar já à tardinha com o ar cansado. Contempla-la a regar as margaridas e a sair à noite com as suas amigas que buzinam e buzinam até ela sair com o vestido justo e curto que faz realçar as suas formas de mulher.
Gostava tanto de saber mais, orgulho-me da minha perspicácia, do simples facto de ser observador. Mas do que me iria orgulhar ainda mais era encher o peito de coragem e convida-la para um café com leite, naqueles grandes copos de café que ela leva para o trabalho todos os dias. Mas como? Se vivo das laranjas que atiro ao ar, e da boa vontade de quem passa por mim? Gosto de dizer que sou malabarista! Mas quem quero enganar? Sou aquilo a que chamam um vagabundo …  E talvez seja. E porque não orgulhar-me disso também? Sou vagabundo porque minha casa é junto a ti Ruiva!
E os ciúmes que me consomem quando te vejo entrar ou sair com um dos teus amigos. São tantos os que disputam o teu nobre coração, mas tu simplesmente parte-los como casca de ovo, infelizmente ainda não tiveste oportunidade de brincar com o meu!
Foi na manhã quase quente de sexta-feira, que soube tudo o que queria saber sobre ti, pelo menos era o que pensava na altura, agora sei que quero saber muito mais! Logo reparei que falavas muito, era impossível não entender isso, tinhas uma voz desafinada, um tom agudo. E que brincadeira a minha … Cansei-me das laranjas, dos pinos, das bolas, quis fogo! Aventurei-me, brinquei com ele e queimei-me, atirei-o ao ar como se fossem as minhas amigas bolas, aquelas a que já estou habituado. Por momentos vi a minha mão arder, era uma dor insuportável. Mas encantador aquele espectáculo que nunca antes tinha presenciado. Foi a primeira vez que provoquei dor a mim mesmo. Achava obtuso, estulto, néscio, burro, estúpido, tal acto de despertar dor em si mesmo, nunca antes tinha o compreendido, até eu mesmo o comprovar. Ainda hoje lido com tal vício que me corrói um pouco todos, mas só o facto de o estar a admitir perante estes pequenos, frágeis e virgens guardanapos que pedi “emprestado” ao senhor do café demonstra que estou a superar tal problema. Mas tu, Ruiva ajudaste-me, lembro-me do teu ar preocupado a olhar para a minha mão enquanto eu me hipnotizava com o desconhecido ...  Tu dizias:
-Malabarista! Senhor malabarista! Rapaz, olhe a sua mão, está a arder homem …
Foste-te tu que me acordaste! Fiquei-te tão grato, fui a tua casa. Fiquei a conhecer-te! Altruísta, corajosa, por meter tal vagabundo malabarista, no teu pequeno andar, talvez inocente, inócua demais. Fiquei a saber que te chamavas Clara, que trabalhavas num jornal e que adoravas! Que já me tinhas visto e que te fascinavas por tal arte de atirar ao ar. Que escrevias, que gostavas muito de todas as artes possíveis e imagináveis, mas que te lamentavas por não conhecer melhor nenhuma delas, e naquele dia acabas-te por ligar para o jornal, alegando que uma horrível dor de estômago te estava a fulminar:
- Não chefe, é horrível, não consigo aguentar, mas eu vou tentar fazer tudo aqui em casa e levo amanhã para a redacção. Não chefe , não.     Mas eu vou beber chá e vou dormir. Sim chefe , obrigada (…)  - E pronto já está. Como te chamas mesmo malabarista?
- Gabriel.
- Ah sim, pois é.
- Mas não é necessário ficares comigo, não quero que te prendas. Posso-te tratar por tu, não posso Clara?
- Oh claro que sim Gabriel. Mas não, é que eu não quero mesmo e trabalhar, estou cansada, gostava de ser assim como tu,  atirar laranjas ao ar, fazer o que gosto, sem horários rotineiros.
- Não queiras Clara, nem um emprego consigo encontrar, ando com a casa às costas.
- Pois, tu não tens casa pois não? E os teus pais ?
E foi ai que eu lhe contei toda a minha história de vida, e ela pura e simplesmente encantou-se. Admirou-me pelo facto de ser uma pessoa destemida, corajosa …  E eu , tirei-lhe aquela  ideia da cabeça, o meu grande objectivo agora era correr para os braços da minha mãe a gritar-lhe: - Consegui mãezinha, consegui ! – Mas não conseguia!
Eu queria que a minha mãe soubesse! Juro que queria, queria que ela soubesse o quão era assolapada a paixão que sentia por aqueles cabelos cor de Marte, pela sua voz desafinada, pelo seu corpo de bailarina, pelo seu rosto sarapintado de sardas, pelo seu riso estridente, pelas suas observações patetas, caricatas, castiças … Mas que no fundo faziam sentido, o único problema é que ninguém as tentava entender.
Passamos o resto da manhã em casa dela, mais tarde insistiu em oferecer-me almoço, segundo ela, cachorros quentes seguidos de pasteis acompanhados por uma grande chávena de café sobre o rio, era a receita perfeita para um resto de dia feliz. Era inacreditável, como poderiam dois estranhos entregarem-se assim por um dia, á mercê do destino, esquecendo todas as responsabilidades e complicações, algo completamente desconhecido para o nobre Clara.
No final do dia, já o relógio batia as doze badaladas:                     
- Como o tempo passa a correr Ruiva.
- Ruiva, Gabriel?
- Clara faz lembrar-me casca de ovo, o quão é frágil é casca de ovo, por isso Clara, visto que és uma mulher forte, vou chamar-te também algo pujante e forte como: Ruiva! 
- Está bem Gabriel, mas agora tenho que ir. E caso não nos voltemos a ver, só quero dizer-te que eu hoje realmente senti-me Ruiva.
- Mas Clara, quer dizer Ruiva. Como isso é possível? Eu moro junto a ti!
Clara adorou o facto como ele olhava para a sua nobre, mas pobre vida.
- Tudo pode acontecer caro amigo -  e dito isto, deixou-me um envelope no bolso do seu casaco, tirou o gorro azul da minha cabeça e meteu os seus cabelos ruivos dentro deste, deu-me um beijo nos lábios que se assemelhou  a um penso rápido. Como o nome diz: rápido! De despedida para curar a ferida.
 Pediu-me para fechar os olhos, e quando os voltei a abrir, já não conseguia ver os cabelos cor de fogo da Ruiva do andar da esquina, aquela que me roubara o coração. No meu bolso estava, o que deveria ser um ordenado inteirinho da Ruiva!
Corri, corri até as minhas pernas gemerem e implorarem para parar, mas as pernas finas e ágeis de Clara, correram mais.
O que faria com todo aquele dinheiro, que não era assim tanto, mas dava para talvez comprar umas roupas, tomar um banho e encontrar um emprego, talvez meter-me no comboio e voltar a casa … Talvez dê para alugar um pequenino quarto… Possivelmente. Mas não era justo, aquele dinheiro não me pertencia, nada fiz para o merecer e todos sabem que a vida não é propriamente fácil, muito pelo contrário! Queria devolve-lo a Ruiva! Iria voltar para a sua porta e ali ficaria até lhe devolver esperançosa quantia de dinheiro.
E esta foi a minha convicção até encontrar um recado, um recado para mim no correio de Clara! Uma cartinha de Clara Papoilas. (Juro que a mocinha se chama Papoilas).
Respirei fundo.


Querido Gabriel
Se não leres esta carta, é bom sinal. Quer dizer que seguiste em frente, que arranjas-te um emprego e voltas-te para a tua mãe, ou quem sabe? Alugas-te um quarto e deixas-te esta rua tão rica em sonhos perdidos. Bem, mas se a estiveres a ler, é para te dizer, que eu não quero dinheiro nenhum de volta, eu dei-to porque tenho esperanças que lhe dês melhor uso que eu. Se estivesse na minha posse iria servir para eu pagar a renda, comprar comida para o meu gato – o Pastel - comida para mim e um par de sapatos! Um rotineiro par de sapatos. Por isso eu dei-to a ti, porque eu não o quero para nada.
Escusas de continuar à minha porta, eu abandonei o meu emprego e tão cedo não irei voltar, vou viver a vida, para depois poder escrever um livro sobre esta mesma
 Por isso Gabriel, meu querido malabarista, apesar de só teres passado cerca de 12 horas comigo, foram 12 intensas horas. E eu quero, quero mesmo que te faças a vida!  E que sejas um fantástico malabarista. Quero que voltes para a tua mãe e que lhe fales de mim, a tua amiga Ruiva.
E foste tu, foste tu que me deste a motivação e a coragem que precisava para largar tudo e ir atrás do que eu verdadeiramente quero, tal como tu fizeste há anos trás, tão jovem, belo e apaixonado que deverias ser (e continuas a ser meu caro amigo aproveita bem todo o material de que és feito, porque se não é ouro, é prata).
Mas agora não te preocupes porque daqui a dez anos não me irás encontrar com a casa as costas, porque se algum dia isso estiver prestes a acontecer eu não vou ser orgulhosa como tu estás a ser agora e voltarei para as asas da minha mãe, quem sabe para as tuas, ou para as do mundo.
Talvez rume às asas da minha mãe, sem passar pelas do mundo. No fundo acho que é do que sinto mais falta. Consegui tudo o que queria. Sempre fui uma jovem determinada, e devido a essa minha característica levei tudo a minha avante. Mas agora que tenho tudo o que quero e que fiz tudo o que queria. Apetece-me queimar tudo isto e voltar a fazer. (Tal é a frustração …) Acho que tudo se resume ao facto de ter vinte cinco anos e nenhum objectivo. Por isso, ora é isso mesmo! Vou voltar para casa e refazer os meus passos! Vou para as asas da minha mãe.
E doida? Sim talvez seja, entregar-te assim um pequeno tesouro, mas eu acho que o mereces se não tanto como eu, muito mais!
E agora um beijo semelhante a um penso rápido para a saudade não doer, e um abraço quente e intenso como o solstício de verão, para deixar o meu cheiro e a minha presença agarradas à tua vida, tal como mel (Acho que estou a ser assim tão sincera, porque tenho esperanças que não chegues a ler esta carta, mas cativaste-me Gabriel Brigas, trocaste-me as voltas).
E o teu gorro? Ora assenta-me maravilhosamente bem, foi feito à minha medida e condiz tão bem com o ruivo dos meus caracóis, caracóis que não são caracóis.

Com amor e o mundo na palma da mão
Clara Papoilas (Sim, Papoilas como a cor do meu cabelo)

PS: Caso estejas a minha porta, terás de ler esta carta. Por isso irei deixa-la no meu correio. Por favor chega até ela antes que alguma vizinha minha o faça. Apressa-te!

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